Friday, April 24, 2020

Abandonados em Santos


Abandonados em Santos 


Hoje, 24 de abril de 2020, fazem exatamente 50 anos que eu e minha família desembarcamos em terras brasileiras. Para celebrar essa data decidi escrever um texto contando um pouco sobre essa aventura. 

Ilustração por Synnöve Dahlström Hilkner

Minha mãe nunca superou o trauma de não ter ninguém nos esperando no porto de Santos quando chegamos ao Brasil. Mesmo passados trinta anos, ela ainda falava indignada no assunto quando conversávamos ao telefone ou pessoalmente. 

Saímos da Finlândia de navio dia 4 de abril de 1970 para Lübeck, Alemanha. Pegamos o mar agitado no segundo dia e muitos passageiros enjoaram, o restaurante ficou quase vazio. De Lübeck fomos de trem a Hamburgo, onde ficamos em um hotel. As camas eram muito confortáveis, com edredons de plumas. Minhas irmãs Bodil e Synnöve dividiram um dos quartos e aconteceu algo um tanto inusitado. Synnöve deitou na cama que a Bodil queria e, como ela se recusou a sair, Bodil acabou mordendo o traseiro dela. Todo mundo ficou surpreso, Bodil geralmente era muito calma.

Dia 7 de abril embarcamos no Pasteur, um navio de passageiros francês que passava pelo Brasil; o destino final era Buenos Aires, Argentina. Essa viagem levou 17 dias, com várias paradas ao longo do caminho: Le Havre na França, Southampton na Inglaterra, Vigo na Espanha, Lisboa em Portugal. Lembro que passamos por Fernando de Noronha no dia 22 de abril e chegamos ao Rio de Janeiro dia 23.

A viagem com o Pasteur ficou muito nítida na minha lembrança. Era grande, tinha piscina com água salgada tirada do mar, sala de jogos, sala de recreação para crianças, e um restaurante onde fazíamos todas as refeições. A nossa mesa era grande e redonda, afinal éramos seis pessoas no total. Quase sempre era o mesmo garçom que nos atendia, um senhor muito querido e bem humorado que adorava crianças. Um dia ele perguntou à nossa mãe como se dizia “amiga” em sueco. Ela escreveu “väninna” e tentou explicar como se pronunciava (véninna), mas ele não conseguia pronunciar da forma correta. Passou o resto da viagem chamando a menina que comesse tudo direitinho de “vanina”. Alguns anos depois descobri que esse nome existe de fato, e assim a minha filha recebeu o nome de Vanina.

Durante a viagem Tove ficou muito doente. Nada parava no estômago e ela ficou seriamente desidratada. Lembro que a minha mãe pediu que eu jogasse o livro que ela estava lendo no mar, porque era uma história sobre alguém que envenenou pessoas da família e os sintomas descritos eram muito parecidos com os da Tove. Não que ela acreditasse que tivesse alguma influência, acho, mas ela se sentia muito mal ao ler aquilo. O dia que a Tove acordou dizendo que estava com fome e comeu uma banana, ela chorou de alegria.

Synnöve prensou o dedo na porta da cabine, mas a unha só caiu na cama de um dos hotéis que ficamos depois da chegada. Ela também lembra de quase ter se afogado na piscina. A piscina foi esvaziada para limpeza e ela achou fantástico. Como ela ainda não sabia nadar, dava para ficar de pé e correr de um lado para outro dentro dela, com água na altura dos joelhos. Mas ela era abastecida com água do mar, bombeada com força. Quando isso começou ela estava na extremidade oposta e a força da água a impediu de chegar à escada. Felizmente cheguei com uns amigos que estenderam as mãos e conseguiram tirá-la de lá.

Durante a viagem também houve o chamado “Batismo de Netuno”. É um antigo costume de marinheiros, aqueles que estão cruzando o equador pela primeira vez passavam por um trote. No passado podia ser até bastante violento, mas no navio é claro que fizeram uma encenação bastante amistosa. Yngve e eu ficamos por perto para que nos ‘pegassem’. Primeiro lembro que colocaram alguma meleca de chocolate no pé do Netuno (um tripulante fantasiado), e era para eu beijar o pé. Beijei do lado. Depois me colocaram numa cadeira e acho que quebraram ovos na minha cabeça. No fim éramos jogados na piscina. Foi divertido.

Nosso cachorro Båtsman, um labrador preto, viajou no navio conosco. Ele ficou num canil que ficava num deck bem no alto do navio. A gente visitava de vez em quando e minha mãe levava ele para passear.

Finalmente chegamos no porto de Santos no dia 24 de abril. Meu irmão, Yngve, tinha 16 anos, eu 13, e minhas irmãs, Bodil, Synnöve e Tove, tinham respectivamente 10, 6 e 4 anos.

Agora imaginem a situação da minha mãe com cinco filhos e um cachorro, sem dinheiro e sem falar a língua, sozinha na aduana. E ninguém estava lá para nos receber. Não lembro disso como algo traumático, porque minha mãe foi capaz de manter a calma. Lembro que ela me entregou a pasta de documentos importantes e disse, “Cuida disso, não deixa ninguém pegar. Senta em cima se precisar!” Havia a possibilidade de termos que passar a noite por ali.

Porquê estávamos ali afinal?

Meu pai havia conseguido emprego em uma firma norueguêsa, Borregaard (que depois mudaria de dono e de nome várias vezes, atualmente é chilena e se chama CMPC), para trabalhar na fábrica de celulose que estava sendo construída em Guaíba, RS. Ele já estava no Brasil, em Porto Alegre, e o combinado era que funcionários da firma viriam de São Paulo para nos receber em Santos.

Então estavámos ali, sem saber para onde ir e o que fazer.

Acredito que para a minha mãe a situação foi especialmente traumática por causa das expectativas dela com relação a essa viagem e essa mudança. O pai dela era capitão de navio mercante nas décadas de 1920 e 1930. Entre outros países ele também vinha ao Brasil. Minha vó, minha tia e minha mãe viajavam com ele até que minha mãe completasse 7 anos, quando tiveram que permanecer em casa para que elas frequentassem a escola. Sei que todas ficaram muito tristes por não poderem mais acompanhar o meu avô. Para a minha mãe, Brasil ficou na lembrança dela como um lugar encantado, e posso imaginar que representava até um resgate da memória do pai dela que desapareceu numa tempestade no Mar do Norte quando ela tinha 12 anos.

Acabou que tudo se resolveu até muito bem, e rápido. Em menos de uma hora encontraram um funcionário da alfândega que falava inglês, e ele ajudou a minha mãe. Ele conhecia um homem que tinha um hotel em Santos. Não lembro exatamente como chegamos até o hotel, que se chamava Indaiá, mas ele nos recebeu de braços abertos. Não sei se ele era inglês, mas o chamamos de Sir John. De lá minha mãe conseguiu telefonar para o escritório da firma em São Paulo. Quando ela falou com a secretária ela disse, “You were supposed to arrive tomorrow!” [Vocês deviam chegar amanhã!]. A resposta da minha mãe foi, “I’m so sorry, but we arrived today!” [Sinto muito, mas chegamos hoje!]. O problema foi que haviam se equivocado nas datas e anotado a data de saída do navio do porto de Santos em vez da data de chegada. Simples assim.

Estávamos exaustos e com fome. No hotel só havia lanches, então mais tarde fomos almoçar em um restaurante muito bom e pedimos filé mignon. Quando os pratos estavam servidos e íamos começar a comer, o pessoal da firma apareceu. Tínhamos que ir depressa para São Paulo para pegar o avião para Porto Alegre. Tivemos que sair do restaurante sem comer, pegar as malas no hotel e entrar nos carros, loucos de fome. Assim conhecemos as estradas entre Santos e São Paulo e todas as suas curvas, em alta velocidade. No caminho a Synnöve sentiu frio e um dos homens emprestou o casaco do terno para ela. Em seguida ela ficou enjoada e vomitou no terno. Diz ela que nunca viu alguém fazer “tamanha cara de bunda”. Minha mãe teve que ir segurando o nosso cachorro no chão o caminho todo, porque era proibido levar cachorros de carro.

No fim não deu tempo de pegar aquele avião, então nos colocaram em um hotel. Aí já era quase hora da janta, mas ninguém comeu muito porque a fome já tinha até passado. Ficamos dois ou três dias nesse hotel. Foi aí que a Synnöve perdeu a unha. Dia 26 era o aniversário dela, que foi comemorado no hotel mesmo, com direito a bolo e presentes. Não lembro bem se foi nesse dia ou no dia seguinte que viajamos a Porto Alegre onde o meu pai nos recebeu.

Na primeira semana ficamos em um hotel no centro de Porto Alegre, o Plaza “velho”, que não existe mais. Era final de abril e estava quente. Tove e Synnöve aprenderam com o garçom do restaurante do hotel a dizer “mais presunto”. A Tove se apaixonou pelo presunto e pedia sempre, dizia a frase pra qualquer pessoa que encontrasse pela frente.

No início de maio nos mudamos para um hotel em Guaíba, Bavária. (O hotel ainda existe, atualmente se chama Três Figueiras.) Posso dizer que nunca passamos tanto frio na Finlândia quanto na nossa segunda semana no Brasil. Na Finlândia faz muito frio mas nunca se passa frio dentro de casa porque tem aquecimento central em todas as casas. De repente esfriou, o hotel era pequeno e precário, não estava preparado para tantos hóspedes ao mesmo tempo. Não haviam cobertores suficientes e lembro da minha mãe colocando todas as roupas que podia em cima do cobertor fininho para nos aquecer um pouco mais. E usamos todas as roupas que dava como “pijama”.

Tinham vindo várias famílias para trabalhar no projeto da fábrica, a maioria de norueguêses. Convivíamos bastante no Clube que ainda existia até poucos anos atrás, mais conhecida como “Clube da Riocell”. A maioria preferiu morar em casas construídas especialmente para os que vieram trabalhar na fábrica, mas os meu pais decidiram morar na Vila Elza porque minha mãe achou melhor que convivêssemos mais de perto com brasileiros.

Meu irmão, eu, e minhas irmãs íamos à escola apenas para aprender português naquele primeiro ano (maio a novembro de 1970). Uma vizinha nossa era professora e nos emprestava livros; aprendi muito lendo “Reinações de Narizinho” e outros livros infantis. Em um ano eu já tinha aprendido o suficiente para retomar os estudos normalmente.

Há muito mais para contar sobre tudo que vivenciamos no Brasil, e também muitas histórias sobre a família e os nossos antepassados. Esse relato é apenas uma pequena parte do que pretendo aumentar com o tempo e, se tudo der certo, um dia se transformar em um livro.


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Minha irmã, Synnöve, escreveu um relato ao estilo dela 
"Uma história de imigração - A visão do primeiro olhar"
http://agenciasn.com.br/arquivos/17238

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3 comments:

  1. Åsa, que texto maravilhoso! Muito obrigado por compartilhar sua história conosco. Que coragem teve sua mãe!Fico impressionado com pessoas que emigraram de suas terras sem saber uma palavra na língua da terra onde passam a morar. Incrível como vocês conseguiram dar a volta por cima disso tudo e prosperar. Parabéns pela família linda que você tinha quando garota e a que você construiu depois de adulta. Eu sempre gostei do que você escreve, desde os tempos de seu blog anterior, "Uma ateia ae bom humor." Um beijão para você e para sua família linda

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    1. Obrigada, querido Sérgio. Fico muito feliz que tenha gostado.
      Beijão

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  2. Åsa, sou de Santos e fico abismado com sua memória. O Hotel Indaiá realmente existiu, assim como o cinema Indaiá.

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