Cinco anos depois, durante a minha primeira gravidez, eu costumava ler revistas na sala de espera enquanto esperava ser atendida pelo médico. Na época não existia celular nem internet, o primeiro computador havia sido construído pouco mais de 20 anos antes (ocupando uma sala enorme); de telefone só existia o fixo, e era acessível só para pessoas com bastante dinheiro. Voltando às revistas, também lia fotonovelas. Fotonovelas era uma espécie de histórias em quadrinhos, mas com fotos. Uma atriz que aparecia em várias dessas fotonovelas e que devia ser italiana, se chamava Paola Pitti e eu a achava muito bonita. Um dia me deparei com uma história em que o nome dela era Vanina. Aparentemente é um nome francês, mas não tenho certeza. Me veio à lembrança o garçom do navio Pasteur e como ele não conseguia falar ‘väninna’ com a pronúncia correta, só conseguia dizer ‘vanina’. Pensei, “Então o nome existe!” Naquele momento decidi que, se nascesse uma menina, o nome seria este. Era um tempo em que não havia como saber o sexo dos bebês antes de nascer. Por isso, sempre era necessário ter dois nomes escolhidos, um de menina e um de menino. Se fosse menino, o nome escolhido era Herbert.
Livrepensadora
Wednesday, May 17, 2023
O nome da minha filha, Vanina
A escolha do nome dela foi completamente unilateral e monocrática. Decidi e pronto. A maioria não gostou, mas eu bati o pé. O meu motivo tinha relação com a viagem de navio que fizemos da Finlândia ao Brasil, e com um senhor francês muito simpático que servia a nossa mesa no restaurante do navio. Ele se encantava especialmente porque éramos uma ‘escadinha’ de quatro meninas, e ele sempre nos incentivava a comer tudo. Ele queria deixar claro que aquela que comesse bastante era amiga dele, e perguntou à minha mãe como se dizia amiga em sueco. Ela explicou que era “väninna” e até escreveu para ele ver. Evidentemente ele não conseguia dizer a palavra com a pronúncia correta em sueco (venínna), o que ele dizia soava como “vanina”.
Friday, April 24, 2020
Abandonados em Santos
Abandonados em Santos
Hoje, 24 de abril de 2020, fazem exatamente 50 anos que eu e minha família desembarcamos em terras brasileiras. Para celebrar essa data decidi escrever um texto contando um pouco sobre essa aventura.
Minha mãe nunca superou o trauma de não ter ninguém nos esperando no porto de Santos quando chegamos ao Brasil. Mesmo passados trinta anos, ela ainda falava indignada no assunto quando conversávamos ao telefone ou pessoalmente.
Saímos da Finlândia de navio dia 4 de abril de 1970 para Lübeck, Alemanha. Pegamos o mar agitado no segundo dia e muitos passageiros enjoaram, o restaurante ficou quase vazio. De Lübeck fomos de trem a Hamburgo, onde ficamos em um hotel. As camas eram muito confortáveis, com edredons de plumas. Minhas irmãs Bodil e Synnöve dividiram um dos quartos e aconteceu algo um tanto inusitado. Synnöve deitou na cama que a Bodil queria e, como ela se recusou a sair, Bodil acabou mordendo o traseiro dela. Todo mundo ficou surpreso, Bodil geralmente era muito calma.
Dia 7 de abril embarcamos no Pasteur, um navio de passageiros francês que passava pelo Brasil; o destino final era Buenos Aires, Argentina. Essa viagem levou 17 dias, com várias paradas ao longo do caminho: Le Havre na França, Southampton na Inglaterra, Vigo na Espanha, Lisboa em Portugal. Lembro que passamos por Fernando de Noronha no dia 22 de abril e chegamos ao Rio de Janeiro dia 23.
A viagem com o Pasteur ficou muito nítida na minha lembrança. Era grande, tinha piscina com água salgada tirada do mar, sala de jogos, sala de recreação para crianças, e um restaurante onde fazíamos todas as refeições. A nossa mesa era grande e redonda, afinal éramos seis pessoas no total. Quase sempre era o mesmo garçom que nos atendia, um senhor muito querido e bem humorado que adorava crianças. Um dia ele perguntou à nossa mãe como se dizia “amiga” em sueco. Ela escreveu “väninna” e tentou explicar como se pronunciava (véninna), mas ele não conseguia pronunciar da forma correta. Passou o resto da viagem chamando a menina que comesse tudo direitinho de “vanina”. Alguns anos depois descobri que esse nome existe de fato, e assim a minha filha recebeu o nome de Vanina.
Durante a viagem Tove ficou muito doente. Nada parava no estômago e ela ficou seriamente desidratada. Lembro que a minha mãe pediu que eu jogasse o livro que ela estava lendo no mar, porque era uma história sobre alguém que envenenou pessoas da família e os sintomas descritos eram muito parecidos com os da Tove. Não que ela acreditasse que tivesse alguma influência, acho, mas ela se sentia muito mal ao ler aquilo. O dia que a Tove acordou dizendo que estava com fome e comeu uma banana, ela chorou de alegria.
Synnöve prensou o dedo na porta da cabine, mas a unha só caiu na cama de um dos hotéis que ficamos depois da chegada. Ela também lembra de quase ter se afogado na piscina. A piscina foi esvaziada para limpeza e ela achou fantástico. Como ela ainda não sabia nadar, dava para ficar de pé e correr de um lado para outro dentro dela, com água na altura dos joelhos. Mas ela era abastecida com água do mar, bombeada com força. Quando isso começou ela estava na extremidade oposta e a força da água a impediu de chegar à escada. Felizmente cheguei com uns amigos que estenderam as mãos e conseguiram tirá-la de lá.
Durante a viagem também houve o chamado “Batismo de Netuno”. É um antigo costume de marinheiros, aqueles que estão cruzando o equador pela primeira vez passavam por um trote. No passado podia ser até bastante violento, mas no navio é claro que fizeram uma encenação bastante amistosa. Yngve e eu ficamos por perto para que nos ‘pegassem’. Primeiro lembro que colocaram alguma meleca de chocolate no pé do Netuno (um tripulante fantasiado), e era para eu beijar o pé. Beijei do lado. Depois me colocaram numa cadeira e acho que quebraram ovos na minha cabeça. No fim éramos jogados na piscina. Foi divertido.
Nosso cachorro Båtsman, um labrador preto, viajou no navio conosco. Ele ficou num canil que ficava num deck bem no alto do navio. A gente visitava de vez em quando e minha mãe levava ele para passear.
Finalmente chegamos no porto de Santos no dia 24 de abril. Meu irmão, Yngve, tinha 16 anos, eu 13, e minhas irmãs, Bodil, Synnöve e Tove, tinham respectivamente 10, 6 e 4 anos.
Agora imaginem a situação da minha mãe com cinco filhos e um cachorro, sem dinheiro e sem falar a língua, sozinha na aduana. E ninguém estava lá para nos receber. Não lembro disso como algo traumático, porque minha mãe foi capaz de manter a calma. Lembro que ela me entregou a pasta de documentos importantes e disse, “Cuida disso, não deixa ninguém pegar. Senta em cima se precisar!” Havia a possibilidade de termos que passar a noite por ali.
Porquê estávamos ali afinal?
Meu pai havia conseguido emprego em uma firma norueguêsa, Borregaard (que depois mudaria de dono e de nome várias vezes, atualmente é chilena e se chama CMPC), para trabalhar na fábrica de celulose que estava sendo construída em Guaíba, RS. Ele já estava no Brasil, em Porto Alegre, e o combinado era que funcionários da firma viriam de São Paulo para nos receber em Santos.
Então estavámos ali, sem saber para onde ir e o que fazer.
Acredito que para a minha mãe a situação foi especialmente traumática por causa das expectativas dela com relação a essa viagem e essa mudança. O pai dela era capitão de navio mercante nas décadas de 1920 e 1930. Entre outros países ele também vinha ao Brasil. Minha vó, minha tia e minha mãe viajavam com ele até que minha mãe completasse 7 anos, quando tiveram que permanecer em casa para que elas frequentassem a escola. Sei que todas ficaram muito tristes por não poderem mais acompanhar o meu avô. Para a minha mãe, Brasil ficou na lembrança dela como um lugar encantado, e posso imaginar que representava até um resgate da memória do pai dela que desapareceu numa tempestade no Mar do Norte quando ela tinha 12 anos.
Acabou que tudo se resolveu até muito bem, e rápido. Em menos de uma hora encontraram um funcionário da alfândega que falava inglês, e ele ajudou a minha mãe. Ele conhecia um homem que tinha um hotel em Santos. Não lembro exatamente como chegamos até o hotel, que se chamava Indaiá, mas ele nos recebeu de braços abertos. Não sei se ele era inglês, mas o chamamos de Sir John. De lá minha mãe conseguiu telefonar para o escritório da firma em São Paulo. Quando ela falou com a secretária ela disse, “You were supposed to arrive tomorrow!” [Vocês deviam chegar amanhã!]. A resposta da minha mãe foi, “I’m so sorry, but we arrived today!” [Sinto muito, mas chegamos hoje!]. O problema foi que haviam se equivocado nas datas e anotado a data de saída do navio do porto de Santos em vez da data de chegada. Simples assim.
Estávamos exaustos e com fome. No hotel só havia lanches, então mais tarde fomos almoçar em um restaurante muito bom e pedimos filé mignon. Quando os pratos estavam servidos e íamos começar a comer, o pessoal da firma apareceu. Tínhamos que ir depressa para São Paulo para pegar o avião para Porto Alegre. Tivemos que sair do restaurante sem comer, pegar as malas no hotel e entrar nos carros, loucos de fome. Assim conhecemos as estradas entre Santos e São Paulo e todas as suas curvas, em alta velocidade. No caminho a Synnöve sentiu frio e um dos homens emprestou o casaco do terno para ela. Em seguida ela ficou enjoada e vomitou no terno. Diz ela que nunca viu alguém fazer “tamanha cara de bunda”. Minha mãe teve que ir segurando o nosso cachorro no chão o caminho todo, porque era proibido levar cachorros de carro.
No fim não deu tempo de pegar aquele avião, então nos colocaram em um hotel. Aí já era quase hora da janta, mas ninguém comeu muito porque a fome já tinha até passado. Ficamos dois ou três dias nesse hotel. Foi aí que a Synnöve perdeu a unha. Dia 26 era o aniversário dela, que foi comemorado no hotel mesmo, com direito a bolo e presentes. Não lembro bem se foi nesse dia ou no dia seguinte que viajamos a Porto Alegre onde o meu pai nos recebeu.
Na primeira semana ficamos em um hotel no centro de Porto Alegre, o Plaza “velho”, que não existe mais. Era final de abril e estava quente. Tove e Synnöve aprenderam com o garçom do restaurante do hotel a dizer “mais presunto”. A Tove se apaixonou pelo presunto e pedia sempre, dizia a frase pra qualquer pessoa que encontrasse pela frente.
No início de maio nos mudamos para um hotel em Guaíba, Bavária. (O hotel ainda existe, atualmente se chama Três Figueiras.) Posso dizer que nunca passamos tanto frio na Finlândia quanto na nossa segunda semana no Brasil. Na Finlândia faz muito frio mas nunca se passa frio dentro de casa porque tem aquecimento central em todas as casas. De repente esfriou, o hotel era pequeno e precário, não estava preparado para tantos hóspedes ao mesmo tempo. Não haviam cobertores suficientes e lembro da minha mãe colocando todas as roupas que podia em cima do cobertor fininho para nos aquecer um pouco mais. E usamos todas as roupas que dava como “pijama”.
Tinham vindo várias famílias para trabalhar no projeto da fábrica, a maioria de norueguêses. Convivíamos bastante no Clube que ainda existia até poucos anos atrás, mais conhecida como “Clube da Riocell”. A maioria preferiu morar em casas construídas especialmente para os que vieram trabalhar na fábrica, mas os meu pais decidiram morar na Vila Elza porque minha mãe achou melhor que convivêssemos mais de perto com brasileiros.
Meu irmão, eu, e minhas irmãs íamos à escola apenas para aprender português naquele primeiro ano (maio a novembro de 1970). Uma vizinha nossa era professora e nos emprestava livros; aprendi muito lendo “Reinações de Narizinho” e outros livros infantis. Em um ano eu já tinha aprendido o suficiente para retomar os estudos normalmente.
Há muito mais para contar sobre tudo que vivenciamos no Brasil, e também muitas histórias sobre a família e os nossos antepassados. Esse relato é apenas uma pequena parte do que pretendo aumentar com o tempo e, se tudo der certo, um dia se transformar em um livro.
Ilustração por Synnöve Dahlström Hilkner |
Minha mãe nunca superou o trauma de não ter ninguém nos esperando no porto de Santos quando chegamos ao Brasil. Mesmo passados trinta anos, ela ainda falava indignada no assunto quando conversávamos ao telefone ou pessoalmente.
Saímos da Finlândia de navio dia 4 de abril de 1970 para Lübeck, Alemanha. Pegamos o mar agitado no segundo dia e muitos passageiros enjoaram, o restaurante ficou quase vazio. De Lübeck fomos de trem a Hamburgo, onde ficamos em um hotel. As camas eram muito confortáveis, com edredons de plumas. Minhas irmãs Bodil e Synnöve dividiram um dos quartos e aconteceu algo um tanto inusitado. Synnöve deitou na cama que a Bodil queria e, como ela se recusou a sair, Bodil acabou mordendo o traseiro dela. Todo mundo ficou surpreso, Bodil geralmente era muito calma.
Dia 7 de abril embarcamos no Pasteur, um navio de passageiros francês que passava pelo Brasil; o destino final era Buenos Aires, Argentina. Essa viagem levou 17 dias, com várias paradas ao longo do caminho: Le Havre na França, Southampton na Inglaterra, Vigo na Espanha, Lisboa em Portugal. Lembro que passamos por Fernando de Noronha no dia 22 de abril e chegamos ao Rio de Janeiro dia 23.
A viagem com o Pasteur ficou muito nítida na minha lembrança. Era grande, tinha piscina com água salgada tirada do mar, sala de jogos, sala de recreação para crianças, e um restaurante onde fazíamos todas as refeições. A nossa mesa era grande e redonda, afinal éramos seis pessoas no total. Quase sempre era o mesmo garçom que nos atendia, um senhor muito querido e bem humorado que adorava crianças. Um dia ele perguntou à nossa mãe como se dizia “amiga” em sueco. Ela escreveu “väninna” e tentou explicar como se pronunciava (véninna), mas ele não conseguia pronunciar da forma correta. Passou o resto da viagem chamando a menina que comesse tudo direitinho de “vanina”. Alguns anos depois descobri que esse nome existe de fato, e assim a minha filha recebeu o nome de Vanina.
Durante a viagem Tove ficou muito doente. Nada parava no estômago e ela ficou seriamente desidratada. Lembro que a minha mãe pediu que eu jogasse o livro que ela estava lendo no mar, porque era uma história sobre alguém que envenenou pessoas da família e os sintomas descritos eram muito parecidos com os da Tove. Não que ela acreditasse que tivesse alguma influência, acho, mas ela se sentia muito mal ao ler aquilo. O dia que a Tove acordou dizendo que estava com fome e comeu uma banana, ela chorou de alegria.
Synnöve prensou o dedo na porta da cabine, mas a unha só caiu na cama de um dos hotéis que ficamos depois da chegada. Ela também lembra de quase ter se afogado na piscina. A piscina foi esvaziada para limpeza e ela achou fantástico. Como ela ainda não sabia nadar, dava para ficar de pé e correr de um lado para outro dentro dela, com água na altura dos joelhos. Mas ela era abastecida com água do mar, bombeada com força. Quando isso começou ela estava na extremidade oposta e a força da água a impediu de chegar à escada. Felizmente cheguei com uns amigos que estenderam as mãos e conseguiram tirá-la de lá.
Durante a viagem também houve o chamado “Batismo de Netuno”. É um antigo costume de marinheiros, aqueles que estão cruzando o equador pela primeira vez passavam por um trote. No passado podia ser até bastante violento, mas no navio é claro que fizeram uma encenação bastante amistosa. Yngve e eu ficamos por perto para que nos ‘pegassem’. Primeiro lembro que colocaram alguma meleca de chocolate no pé do Netuno (um tripulante fantasiado), e era para eu beijar o pé. Beijei do lado. Depois me colocaram numa cadeira e acho que quebraram ovos na minha cabeça. No fim éramos jogados na piscina. Foi divertido.
Nosso cachorro Båtsman, um labrador preto, viajou no navio conosco. Ele ficou num canil que ficava num deck bem no alto do navio. A gente visitava de vez em quando e minha mãe levava ele para passear.
Finalmente chegamos no porto de Santos no dia 24 de abril. Meu irmão, Yngve, tinha 16 anos, eu 13, e minhas irmãs, Bodil, Synnöve e Tove, tinham respectivamente 10, 6 e 4 anos.
Agora imaginem a situação da minha mãe com cinco filhos e um cachorro, sem dinheiro e sem falar a língua, sozinha na aduana. E ninguém estava lá para nos receber. Não lembro disso como algo traumático, porque minha mãe foi capaz de manter a calma. Lembro que ela me entregou a pasta de documentos importantes e disse, “Cuida disso, não deixa ninguém pegar. Senta em cima se precisar!” Havia a possibilidade de termos que passar a noite por ali.
Porquê estávamos ali afinal?
Meu pai havia conseguido emprego em uma firma norueguêsa, Borregaard (que depois mudaria de dono e de nome várias vezes, atualmente é chilena e se chama CMPC), para trabalhar na fábrica de celulose que estava sendo construída em Guaíba, RS. Ele já estava no Brasil, em Porto Alegre, e o combinado era que funcionários da firma viriam de São Paulo para nos receber em Santos.
Então estavámos ali, sem saber para onde ir e o que fazer.
Acredito que para a minha mãe a situação foi especialmente traumática por causa das expectativas dela com relação a essa viagem e essa mudança. O pai dela era capitão de navio mercante nas décadas de 1920 e 1930. Entre outros países ele também vinha ao Brasil. Minha vó, minha tia e minha mãe viajavam com ele até que minha mãe completasse 7 anos, quando tiveram que permanecer em casa para que elas frequentassem a escola. Sei que todas ficaram muito tristes por não poderem mais acompanhar o meu avô. Para a minha mãe, Brasil ficou na lembrança dela como um lugar encantado, e posso imaginar que representava até um resgate da memória do pai dela que desapareceu numa tempestade no Mar do Norte quando ela tinha 12 anos.
Acabou que tudo se resolveu até muito bem, e rápido. Em menos de uma hora encontraram um funcionário da alfândega que falava inglês, e ele ajudou a minha mãe. Ele conhecia um homem que tinha um hotel em Santos. Não lembro exatamente como chegamos até o hotel, que se chamava Indaiá, mas ele nos recebeu de braços abertos. Não sei se ele era inglês, mas o chamamos de Sir John. De lá minha mãe conseguiu telefonar para o escritório da firma em São Paulo. Quando ela falou com a secretária ela disse, “You were supposed to arrive tomorrow!” [Vocês deviam chegar amanhã!]. A resposta da minha mãe foi, “I’m so sorry, but we arrived today!” [Sinto muito, mas chegamos hoje!]. O problema foi que haviam se equivocado nas datas e anotado a data de saída do navio do porto de Santos em vez da data de chegada. Simples assim.
Estávamos exaustos e com fome. No hotel só havia lanches, então mais tarde fomos almoçar em um restaurante muito bom e pedimos filé mignon. Quando os pratos estavam servidos e íamos começar a comer, o pessoal da firma apareceu. Tínhamos que ir depressa para São Paulo para pegar o avião para Porto Alegre. Tivemos que sair do restaurante sem comer, pegar as malas no hotel e entrar nos carros, loucos de fome. Assim conhecemos as estradas entre Santos e São Paulo e todas as suas curvas, em alta velocidade. No caminho a Synnöve sentiu frio e um dos homens emprestou o casaco do terno para ela. Em seguida ela ficou enjoada e vomitou no terno. Diz ela que nunca viu alguém fazer “tamanha cara de bunda”. Minha mãe teve que ir segurando o nosso cachorro no chão o caminho todo, porque era proibido levar cachorros de carro.
No fim não deu tempo de pegar aquele avião, então nos colocaram em um hotel. Aí já era quase hora da janta, mas ninguém comeu muito porque a fome já tinha até passado. Ficamos dois ou três dias nesse hotel. Foi aí que a Synnöve perdeu a unha. Dia 26 era o aniversário dela, que foi comemorado no hotel mesmo, com direito a bolo e presentes. Não lembro bem se foi nesse dia ou no dia seguinte que viajamos a Porto Alegre onde o meu pai nos recebeu.
Na primeira semana ficamos em um hotel no centro de Porto Alegre, o Plaza “velho”, que não existe mais. Era final de abril e estava quente. Tove e Synnöve aprenderam com o garçom do restaurante do hotel a dizer “mais presunto”. A Tove se apaixonou pelo presunto e pedia sempre, dizia a frase pra qualquer pessoa que encontrasse pela frente.
No início de maio nos mudamos para um hotel em Guaíba, Bavária. (O hotel ainda existe, atualmente se chama Três Figueiras.) Posso dizer que nunca passamos tanto frio na Finlândia quanto na nossa segunda semana no Brasil. Na Finlândia faz muito frio mas nunca se passa frio dentro de casa porque tem aquecimento central em todas as casas. De repente esfriou, o hotel era pequeno e precário, não estava preparado para tantos hóspedes ao mesmo tempo. Não haviam cobertores suficientes e lembro da minha mãe colocando todas as roupas que podia em cima do cobertor fininho para nos aquecer um pouco mais. E usamos todas as roupas que dava como “pijama”.
Tinham vindo várias famílias para trabalhar no projeto da fábrica, a maioria de norueguêses. Convivíamos bastante no Clube que ainda existia até poucos anos atrás, mais conhecida como “Clube da Riocell”. A maioria preferiu morar em casas construídas especialmente para os que vieram trabalhar na fábrica, mas os meu pais decidiram morar na Vila Elza porque minha mãe achou melhor que convivêssemos mais de perto com brasileiros.
Meu irmão, eu, e minhas irmãs íamos à escola apenas para aprender português naquele primeiro ano (maio a novembro de 1970). Uma vizinha nossa era professora e nos emprestava livros; aprendi muito lendo “Reinações de Narizinho” e outros livros infantis. Em um ano eu já tinha aprendido o suficiente para retomar os estudos normalmente.
Há muito mais para contar sobre tudo que vivenciamos no Brasil, e também muitas histórias sobre a família e os nossos antepassados. Esse relato é apenas uma pequena parte do que pretendo aumentar com o tempo e, se tudo der certo, um dia se transformar em um livro.
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Minha irmã, Synnöve, escreveu um relato ao estilo dela
"Uma história de imigração - A visão do primeiro olhar"
http://agenciasn.com.br/arquivos/17238
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Minha irmã, Synnöve, escreveu um relato ao estilo dela
"Uma história de imigração - A visão do primeiro olhar"
http://agenciasn.com.br/arquivos/17238
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Wednesday, December 18, 2019
Torta de Natal
Torta de Natal
Ingredientes
450 g de manteiga sem sal em temperatura
ambiente
2 ¼ de xíxara de açúcar
6 ovos
4 xícaras de farinha
1 colher de sopa cheia de fermento em pó
1 colher de chá de sal
3 colheres de sopa de extrato de baunilha
450 g de noz pecã
450 g de tâmaras
225 g de cerejas em calda vermelhas
225 g de cerejas em calda verdes
Também
dá para usar só cerejas em calda vermelhas, ou substituir as verdes por frutas cristalizadas.
Pique as nozes, tâmaras e cerejas. Escalde as frutas cristalizadas (se for o caso), deixe por uns 10 minutos, escorra e adicione ao restante das frutas.
Bata a manteiga e o açúcar até ficar
esbranquiçado. Adicione os ovos um de cada vez, batendo bem após cada adição.
Acrescente a baunilha e o sal e bata bem.
Coloque uma xícara de farinha nas frutas
picadas e misture para revestir as frutas com a farinha. Misture o fermento no
restante da farinha. Adicione a farinha aos poucos na massa que está na
batedeira, batendo bem para incorporar.
Misture as frutas com a massa com uma
colher de pau. Como fica uma massa bem densa, pode-se até usar as mãos. Coloque
em formas untadas, decore com nozes e cerejas, e asse por 2,5 horas em forno baixo. Pode colocar uma forma
com água na grade de baixo para que a torta mantenha a umidade.
Variações: Pode-se colocar cravo, canela e
gengibre em pó em vez de extrato de baunilha. Também pode colocar uma maçã
picada junto com as frutas.
Também dá para fazer um formas de empadas, o tempo para assar vai ser de 1 a 1,5.
Receita original, em inglês:
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Thursday, June 6, 2019
Reportagem sobre ateus na Veja
Há 17 anos, 05 de junho de 2002, saiu a reportagem sobre ateus em que uma das pessoas entrevistadas fui eu.
Copiei os comentários que saíram na edição seguinte:
Saturday, March 31, 2018
Solidão Cósmica
Há vários anos eu ouvi essa expressão, mas não me lembrava exatamente do contexto. Ela me pareceu muito apropriada, no entanto, para descrever a sensação que nos dá quando nos defrontamos com a idéia de que estamos sozinhos diante do Universo. Quando chegamos à conclusão de que não há nenhum ser sobrenatural para nos proteger, a primeira sensação é de desamparo; dá medo. A intensidade deste medo vai variar dependendo de o quanto a pessoa esteve mergulhada no pensamento religioso, mas em algum grau sempre acontece, com exceção daqueles que se tornam ateus ainda muito jovens, antes de desenvolver a dependência psicológica em relação a essa "entidade divina".
De onde surgiu?
A história por trás da expressão é interessante. Começou com uma entrevista que o Vides fez comigo por e-mail quase cinco anos atrás para um livro que estava escrevendo, e que ainda vai ser publicado.
Uma das perguntas era:
8 - A busca do conhecimento leva, obrigatoriamente, ao ateísmo?
E na próxima resposta acabei falando de novo neste conceito:Re: Não, mas favorece. Depende muito de que premissa a pessoa parte. Conheço pessoas que têm muito conhecimento, mas como partem da premissa de que existe um deus, só levam em consideração os argumentos que favorecem essa perspectiva. Para que o conhecimento leve ao ateísmo é necessário que a pessoa seja muito honesta, e que seja capaz de enfrentar algumas verdades muito duras, entre elas aquilo que eu chamo de ‘solidão cósmica’.
9 - O que é deus?
Re: Complicado. Acho que vem em parte da necessidade de se sentir protegido, em parte porque o ser humano não consegue aceitar a sua própria finitude. É difícil enfrentar a solidão cósmica.Segundo Freud, ‘deus’ é a figura paterna, e tanto pode ser protetor ou punitivo, ou as duas coisas. De qualquer forma, a religiosidade extrema geralmente é sinal de imaturidade, incapacidade de tomar decisões.
Ele ficou curioso e pediu que eu desenvolvesse melhor esse conceito de "Solidão Cósmica".
Minha resposta:
Olhando na internet, eu vi que tem a ver com Carl Sagan, mas tem a ver com o fato de não termos contato, nem saber se existem outros habitantes em outros planetas. Eu comecei a usar o termo para definir também a sensação de desamparo resultante de não acreditar em um deus. Essa idéia eu peguei de um livro de Flávio Gikovate, mas acho que ele não usou essa expressão.
A idéia é que perante o Universo somos nada, totalmente insignificantes. Não havendo um deus para nos proteger e guiar (e punir), estamos sozinhos, desamparados. Somos obrigados a decidir por nós mesmo, assumir a responsabilidade total pelas nossas vidas, e isso é difícil. Isso torna as pessoas mais importantes, na medida em que são a única fonte de apoio. Também faz com que sejamos obrigados a aceitar a imperfeição como sendo inevitável, entender que a vida não é justa e o mundo não é bom, nem nunca será.
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Continuando.
A aquisição de conhecimento nunca será o suficiente para levar alguém a rever os seus conceitos, principalmente os mais caros e mais profundamente arraigados. É preciso uma honestidade quase brutal, é preciso ser capaz de enfrentar a dor de perceber que estamos enganados e nos enganando. Enfrentar a nós mesmo é a coisa mais difícil que existe, e admitir que estamos errados gera um sofrimento psíquico muito difícil de suportar.
Mas depois que o medo passa, depois que a sensação de desamparo é aceita como consequência inevitável da independência, muita coisa muda para melhor. Uma das sensações que surge é uma incrível sensação de liberdade. Se não há ninguém para nos proteger, também não há ninguém para nos punir. A responsabilidade que nos é imposta neste processo, também implica em libertação de "pecados imaginários"; não existe pecar em pensamento, só importam os resultados concretos de nossas ações. Estamos sozinhos perante o Universo, é verdade, mas temos uns aos outros; a solidariedade humana assume uma dimensão inteiramente nova.
Superando o medo e a sensação de desamparo, finalmente encontramos paz.
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Friday, December 26, 2014
Por que o estupro é tão intrínseco à religião
Histórias como o nascimento virgem carecem do consentimento feminino dado livremente. É revelador o quanto ainda estamos dispostos a aceitá-las.
Traduzido por Mariana Vieira
Artigo original - Why rape is so intrinsic to religion
por Valerie Tarico
Zeus chegou a Dânae na forma de chuva de ouro, cortou o "nó da virgindade intacta"e a deixou grávida do herói grego Perseu.
Júpiter tomou Europa à força ao se transformar em um touro branco e raptá-la. Ele a aprisionou na ilha de Creta e a engravidou três vezes ao longo do tempo.
Pan copulou com uma pastora para gerar Hermes.
Os lendários fundadores de Roma, Rômulo e Remo, foram concebidos quando o deus romano Marte engravidou Rea Silvia, uma virgem vestal.
Helena de Tróia, a rara cria feminina de uma união deus-humano, foi gerada quando Zeus se transformou em cisne para chegar até a Leda.
Em algumas versões, Alexandre, o Grande e o imperador Augusto foram 'semeados' por deuses na forma de serpentes por Febo e Júpiter, respectivamente.
Apesar de os cristãos mais antigos terem uma história alternativa, no evangelho de Lucas, a Virgem Maria engravidou quando o Espírito Santo foi até ela e o poder do Altíssimo dela tomou conta.
As versões mais antigas do nascimento de Zoroastra contam que ele nasceu de pai e mãe humanos, assim como Jesus, mas em versões mais recentes sua mãe foi perfurada por uma lança de luz divina.
O deus hindu Shiva teve relações sexuais com a humana Madhura, que veio adorá-lo enquanto sua esposa Parvati estava longe. Parvati transformou Madhura em sapo, mas após doze anos dentro de um poço ela recuperou a forma humana e deu à luz Indrajit.
A mãe de Buda, Maya, descobriu-se grávida após ter sido penetrada por um deus em um sonho.
A concepção pode ser um "arrebatamento", sedução ou algum tipo de penetração para procriação excitante porém não sexual. A história pode vir de uma religião tradicional ocidental ou oriental, pagã ou cristã. Mas esses encontros entre mulheres belas e jovens e deuses têm uma coisa em comum: nenhum deles contém o consentimento deliberado feminino como parte da narrativa. (No evangelho de Lucas, Maria consente depois de não ser consultada, mas comunicada por um poderoso ser sobrenatural sobre o que aconteceria com ela: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!".
Quem precisa de consentimento deliberado? Se se trata de um deus, ela tem de querer, não é mesmo? É assim que a história acaba.
Se a jovem voluptuosa protestar ou não, se a sedução envolver mentira ou mão, se a mulher já tiver um esposo ou um amante, se ela for ou não forçada fisicamente, o que se presume é que a união entre um deus e uma humana é orgasticamente avassaladora e não sangrenta e violenta. E depois? Bem, que mulher não gostaria de estar grávida de um filho (ou filha) de deus?
Por trás dessa metáfora mentirosa e surpreendentemente duradoura se encontram duas presunções que em sua forma mais primitiva podem ter sua origem na biologia evolucionista.
A hipótese biológica, muito simplificada, é a seguinte: machos e fêmeas de cada espécie possuem comportamentos instintivos que maximizam a transmissão de seus genes para a geração seguinte. Entre humanos, fêmeas procuram pelos portadores de esperma da mais alta qualidade que são capazes de atrair. Elas maximizam a qualidade e a capacidade de sobrevivência de seus filhos quando acasalam com machos poderosos e de prestígio. Os machos, por outro lado, maximizam a qualidade e a quantidade de sua cria ao procurar fêmeas férteis (em que beleza é sinal de fertilidade), controlando algumas fêmeas e afastando outros machos enquanto "espalham suas sementes", se conseguirem.
A biologia pode ser o ponto de partida, mas, ao longo do tempo, os impulsos humanos são ornados e institucionalizados, tornando-se sagrados pela cultura e pela religião. A metáfora mítica em que deuses copulam com humanas incorpora fortes crenças culturais e religiosas sobre sexualidade. Histórias familiares desse tipo vêm de sociedades patriarcais, o que significa que elas legitimam os desejos reprodutivos masculinos: homens poderosos não apenas querem controlar a valiosa mercadoria que é a fertilidade feminina, eles devem. Os deuses ordenam e dão o exemplo. E eles determinam que sejam punidos os que violarem a ordem natural das coisas - especialmente as mulheres.
As histórias sobre concepções miraculosas que listei podem ter suas raízes na pré-história, em religiões arcaicas voltadas para a adoração dos astros e do ciclo agrícola, mas sua forma moderna emergiu durante a Idade do Ferro. Nesse momento da história, a maioria das mulheres eram como bens pessoais. Assim como crianças, gado e escravos, elas eram literalmente posse dos homens, e seu valor econômico e espiritual primário se encontrava em sua habilidade de produzir uma cria de linhagem pura e conhecida. Os homens no poder possuíam concubinas e haréns, e mulheres virgens figuravam entre os espólios de guerras. (Veja, por exemplo, a história das virgens midianitas do Velho Testamento, em que Jeová ordena aos israelitas que matem as mulheres "usadas", mas tomem para si as mulheres virgens.)
A biologia pode ser o ponto de partida, mas, ao longo do tempo, os impulsos humanos são ornados e institucionalizados, tornando-se sagrados pela cultura e pela religião. A metáfora mítica em que deuses copulam com humanas incorpora fortes crenças culturais e religiosas sobre sexualidade. Histórias familiares desse tipo vêm de sociedades patriarcais, o que significa que elas legitimam os desejos reprodutivos masculinos: homens poderosos não apenas querem controlar a valiosa mercadoria que é a fertilidade feminina, eles devem. Os deuses ordenam e dão o exemplo. E eles determinam que sejam punidos os que violarem a ordem natural das coisas - especialmente as mulheres.
As histórias sobre concepções miraculosas que listei podem ter suas raízes na pré-história, em religiões arcaicas voltadas para a adoração dos astros e do ciclo agrícola, mas sua forma moderna emergiu durante a Idade do Ferro. Nesse momento da história, a maioria das mulheres eram como bens pessoais. Assim como crianças, gado e escravos, elas eram literalmente posse dos homens, e seu valor econômico e espiritual primário se encontrava em sua habilidade de produzir uma cria de linhagem pura e conhecida. Os homens no poder possuíam concubinas e haréns, e mulheres virgens figuravam entre os espólios de guerras. (Veja, por exemplo, a história das virgens midianitas do Velho Testamento, em que Jeová ordena aos israelitas que matem as mulheres "usadas", mas tomem para si as mulheres virgens.)
Essa também foi a época em que deuses escolhiam seus favoritos e se metiam em assuntos das tribos e nações, e em que grandes homens nasciam grandes. Não é de se admirar que tantos homens poderosos reivindicavam uma ascendência poderosa. Na tradição dos hebreus antigos, isso tomou a forma de obsessão com linhagem pura e descendência de alta estirpe. Escritores da bíblia hebraica traçam a genealogia do rei Davi a partir de Abraão, por exemplo e a genealogia de Abraão a partir do primeiro homem, Adão. Nas civilizações grega e romana, essas reivindicações se transformaram no costume de atribuir paternidade sobrenatural a figuras públicas. A tradição cristã tenta de maneira atrapalhada insistir simultaneamente em traçar a linhagem de Jesus, através de seu pai José, até o rei Davi, e em negar que ele teve um pai humano.
Esse é o contexto das histórias de concepções miraculosas e, nesse contexto, o consentimento da mulher é irrelevante. Em uma sociedade que trata a sexualidade feminina como posse masculina, o único consentimento que pode ser violado é o consentimento do proprietário da mulher, o homem que detém os direitos sobre sua capacidade reprodutiva, tradicionalmente seu pai, noivo ou esposo. Muitos cristãos se surpreendem quando descobrem que em nenhuma passagem bíblica, no Velho ou no Novo Testamento, autor algum diz que o consentimento da mulher é necessário, ou mesmo desejável, antes do sexo.
A omissão é mais que lamentável: é trágica. Dois mil anos depois que textos hebreus e aramaicos foram anexados à moderna bíblia judaica, 1.600 anos depois de um comitê católico romano votar pela inclusão e exclusão de livros da bíblia cristã, 1.400 anos depois de Maomé escrever o Corão (que foi fortemente inspirado na estrutura moral da tradição judaico-cristã), nós ainda temos problemas com a questão do consentimento feminino. Nossa luta se torna imensuravelmente mais difícil pela presença de textos antigos que se tornaram ídolos modernos - textos que imputam a Deus os desejos dos homens.
O exemplo mais emblemático talvez seja um documento publicado pelo Estado Islâmico definindo regras para o tratamento de escravas sexuais, regras inspiradas no Corão. Mais perto dos americanos está a existência embaraçosa porém disseminada de líderes cristãos que ensinam que a honra feminina está na maternidade, e que uma mulher que falha em servir a seu esposo sempre que ele deseja está falhando em servir a Deus.
Mas ainda mais perto de casa para muitos é a chocante prevalência em campi universitários, e na sociedade em geral, de manipulação e coação sexual perpetrada por homens que, do contrário, pareceriam moralmente intactos. É impossível deixar de notar que um grande número de casos notórios envolvem homens influentes: membros de fraternidades, um ator famoso, um locutor de rádio, estrelas de futebol do interior e atletas profissionais de destaque. Homens, em outras palavras, que pensam ser deuses. Convencidos das próprias características divinas, torna-se lógico que o objeto de sua atenção deve querê-lo - e se ela não quiser, bem, tudo bem, já que quando um deus quer uma mulher, o consentimento não é de fato parte da história.
Monday, September 29, 2014
A cultura da culpabilização da vítima
Há mais de trinta anos houve um homicídio na cidade onde eu morava, um dos inspetores matou a tiros o Delegado.
Quando o caso foi a julgamento, eu disse, "Sabem o que vai acontecer?
A vítima será julgada culpada e merecedora da morte que teve."
Dito e feito, foi o que aconteceu. É claro que houve alguma condenação, mas o julgamento realmente girou em torno de tudo que o Delegado fez para merecer a reação do inspetor.
Lendo o artigo do Marcos Rolim este domingo, A justiça e o cego, me lembrei daquilo ao ler o seguinte trecho:
"Há algo de muito errado com um País em que as vítimas correm o risco de serem consideradas culpadas por decisões judiciais. Algo de substancial na própria ideia de justiça é ameaçado pela insensibilidade e pela cegueira moral de que nos fala Bauman. Todos devem concordar, a começar pelos melhores magistrados, que uma Justiça que não ofereça exemplos de retidão, que se dobre diante de privilégios, que alimente a obscuridade de atos tomados em benefício próprio, produz orfandade ainda mais radical do que aquela que a política já nos legou.
A pergunta, então, se confunde com o desespero:
e se nos faltarem juízes justos, recorremos a quem?"
Boa pergunta.
Recorremos a quem, quando toda a sociedade acha que a vítima é que 'provocou', que a vítima não devia estar ali, que a vítima fez algo para 'merecer' o ataque que sofreu?
É exatamente este o caso das mulheres que são assediadas, agredidas e estupradas, com a 'desculpa' de que estavam bêbadas, estavam de roupa curta, estavam na rua 'aquela hora'. etc.
Até quando?
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