Friday, December 26, 2014

Por que o estupro é tão intrínseco à religião

Histórias como o nascimento virgem carecem do consentimento feminino dado livremente. É revelador o quanto ainda estamos dispostos a aceitá-las. 

Traduzido por  Mariana Vieira


Artigo original - Why rape is so intrinsic to religion   

por Valerie Tarico                   



Deuses e semideuses poderosos engravidando mulheres humanas: é um tema comum na história da religião e é mais que uma leve insinuação de estupro.

Zeus chegou a Dânae na forma de chuva de ouro, cortou o "nó da virgindade intacta"e a deixou grávida do herói grego Perseu.

Júpiter tomou Europa à força ao se transformar em um touro branco e raptá-la. Ele a aprisionou na ilha de Creta e a engravidou três vezes ao longo do tempo.

Pan copulou com uma pastora para gerar Hermes.

Os lendários fundadores de Roma, Rômulo e Remo, foram concebidos quando o deus romano Marte engravidou Rea Silvia, uma virgem vestal.

Helena de Tróia, a rara cria feminina de uma união deus-humano, foi gerada quando Zeus se transformou em cisne para chegar até a Leda.

Em algumas versões, Alexandre, o Grande e o imperador Augusto foram 'semeados' por deuses na forma de serpentes por Febo e Júpiter, respectivamente.

Apesar de os cristãos mais antigos terem uma história alternativa, no evangelho de Lucas, a Virgem Maria engravidou quando o Espírito Santo foi até ela e o poder do Altíssimo dela tomou conta.

As versões mais antigas do nascimento de Zoroastra contam que ele nasceu de pai e mãe humanos, assim como Jesus, mas em versões mais recentes sua mãe foi perfurada por uma lança de luz divina.

O deus hindu Shiva teve relações sexuais com a humana Madhura, que veio adorá-lo enquanto sua esposa Parvati estava longe. Parvati transformou Madhura em sapo, mas após doze anos dentro de um poço ela recuperou a forma humana e deu à luz Indrajit.

A mãe de Buda, Maya, descobriu-se grávida após ter sido penetrada por um deus em um sonho.

A concepção pode ser um "arrebatamento", sedução ou algum tipo de penetração para procriação excitante porém não sexual. A história pode vir de uma religião tradicional ocidental ou oriental, pagã ou cristã. Mas esses encontros entre mulheres belas e jovens e deuses têm uma coisa em comum: nenhum deles contém o consentimento deliberado feminino como parte da narrativa. (No evangelho de Lucas, Maria consente depois de não ser consultada, mas comunicada por um poderoso ser sobrenatural sobre o que aconteceria com ela: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!".

Quem precisa de consentimento deliberado? Se se trata de um deus, ela tem de querer, não é mesmo? É assim que a história acaba.

Se a jovem voluptuosa protestar ou não, se a sedução envolver mentira ou mão, se a mulher já tiver um esposo ou um amante, se ela for ou não forçada fisicamente, o que se presume é que a união entre um deus e uma humana é orgasticamente avassaladora e não sangrenta e violenta. E depois? Bem, que mulher não gostaria de estar grávida de um filho (ou filha) de deus?

Por trás dessa metáfora mentirosa e surpreendentemente duradoura se encontram duas presunções que em sua forma mais primitiva podem ter sua origem na biologia evolucionista.

A hipótese biológica, muito simplificada, é a seguinte: machos e fêmeas de cada espécie possuem comportamentos instintivos que maximizam a transmissão de seus genes para a geração seguinte. Entre humanos, fêmeas procuram pelos portadores de esperma da mais alta qualidade que são capazes de atrair. Elas maximizam a qualidade e a capacidade de sobrevivência de seus filhos quando acasalam com machos poderosos e de prestígio. Os machos, por outro lado, maximizam a qualidade e a quantidade de sua cria ao procurar fêmeas férteis (em que beleza é sinal de fertilidade), controlando algumas fêmeas e afastando outros machos enquanto "espalham suas sementes", se conseguirem.

A biologia pode ser o ponto de partida, mas, ao longo do tempo, os impulsos humanos são ornados e institucionalizados, tornando-se sagrados pela cultura e pela religião. A metáfora mítica em que deuses copulam com humanas incorpora fortes crenças culturais e religiosas sobre sexualidade. Histórias familiares desse tipo vêm de sociedades patriarcais, o que significa que elas legitimam os desejos reprodutivos masculinos: homens poderosos não apenas querem controlar a valiosa mercadoria que é a fertilidade feminina, eles devem. Os deuses ordenam e dão o exemplo. E eles determinam que sejam punidos os que violarem a ordem natural das coisas - especialmente as mulheres.

As histórias sobre concepções miraculosas que listei podem ter suas raízes na pré-história, em religiões arcaicas voltadas para a adoração dos astros e do ciclo agrícola, mas sua forma moderna emergiu durante a Idade do Ferro. Nesse momento da história, a maioria das mulheres eram como bens pessoais. Assim como crianças, gado e escravos, elas eram literalmente posse dos homens, e seu valor econômico e espiritual primário se encontrava em sua habilidade de produzir uma cria de linhagem pura e conhecida. Os homens no poder possuíam concubinas e haréns, e mulheres virgens figuravam entre os espólios de guerras. (Veja, por exemplo, a história das virgens midianitas do Velho Testamento, em que Jeová ordena aos israelitas que matem as mulheres "usadas", mas tomem para si as mulheres virgens.)

Essa também foi a época em que deuses escolhiam seus favoritos e se metiam em assuntos das tribos e nações, e em que grandes homens nasciam grandes. Não é de se admirar que tantos homens poderosos reivindicavam uma ascendência poderosa. Na tradição dos hebreus antigos, isso tomou a forma de obsessão com linhagem pura e descendência de alta estirpe. Escritores da bíblia hebraica traçam a genealogia do rei Davi a partir de Abraão, por exemplo e a genealogia de Abraão a partir do primeiro homem, Adão. Nas civilizações grega e romana, essas reivindicações se transformaram no costume de atribuir paternidade sobrenatural a figuras públicas. A tradição cristã tenta de maneira atrapalhada insistir simultaneamente em traçar a linhagem de Jesus, através de seu pai José, até o rei Davi, e em negar que ele teve um pai humano.

Esse é o contexto das histórias de concepções miraculosas e, nesse contexto, o consentimento da mulher é irrelevante. Em uma sociedade que trata a sexualidade feminina como posse masculina, o único consentimento que pode ser violado é o consentimento do proprietário da mulher, o homem que detém os direitos sobre sua capacidade reprodutiva, tradicionalmente seu pai, noivo ou esposo. Muitos cristãos se surpreendem quando descobrem que em nenhuma passagem bíblica, no Velho ou no Novo Testamento, autor algum diz que o consentimento da mulher é necessário, ou mesmo desejável, antes do sexo.

A omissão é mais que lamentável: é trágica. Dois mil anos depois que textos hebreus e aramaicos foram anexados à moderna bíblia judaica, 1.600 anos depois de um comitê católico romano votar pela inclusão e exclusão de livros da bíblia cristã, 1.400 anos depois de Maomé escrever o Corão (que foi fortemente inspirado na estrutura moral da tradição judaico-cristã), nós ainda temos problemas com a questão do consentimento feminino. Nossa luta se torna imensuravelmente mais difícil pela presença de textos antigos que se tornaram ídolos modernos - textos que imputam a Deus os desejos dos homens.

O exemplo mais emblemático talvez seja um documento publicado pelo Estado Islâmico definindo regras para o tratamento de escravas sexuais, regras inspiradas no Corão. Mais perto dos americanos está a existência embaraçosa porém disseminada de líderes cristãos que ensinam que a honra feminina está na maternidade, e que uma mulher que falha em servir a seu esposo sempre que ele deseja está falhando em servir a Deus.

Mas ainda mais perto de casa para muitos é a chocante prevalência em campi universitários, e na sociedade em geral, de manipulação e coação sexual perpetrada por homens que, do contrário, pareceriam moralmente intactos. É impossível deixar de notar que um grande número de casos notórios envolvem homens influentes: membros de fraternidades, um ator famoso, um locutor de rádio, estrelas de futebol do interior e atletas profissionais de destaque. Homens, em outras palavras, que pensam ser deuses. Convencidos das próprias características divinas, torna-se lógico que o objeto de sua atenção deve querê-lo - e se ela não quiser, bem, tudo bem, já que quando um deus quer uma mulher, o consentimento não é de fato parte da história.


6 comments:

  1. Esclarecedor, racional, inteligente e facilmente crível.

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  2. Oi Asa, quero fazer apenas algumas considerações. Realmente várias religiões mostravam estupro como algo comum, o que é muito triste e deve ser criticado, porém devemos considerar que religião nada mais é que um reflexo da sociedade, um grupo de pessoas que acreditam na mesma coisa, assim como ateísmo também pode ser considerado uma religião.
    Falando especificamente do cristianismo. Nesse texto de Números apresentado, a ordem não partiu de Deus, mas de Moisés. Ao estudarmos a bíblia vemos que nem tudo que era decidido por Israel era aprovado por Deus; outra coisa que verifiquei é o sentido da frase, em algumas traduções dá entender que as mulheres virgens eram livres e não estupradas, claro que isso não diminui o horror de que as crianças mulheres eram tão sem valor que tinham um fim diferente das crianças homens, mas devemos considerar o período das guerras e a realidade da mulher que era claramente com menor valor que os homens, em nenhum momento vi Deus aprovar estupros na Bíblia Cristã.
    Eu tenho uma teoria de que não foi a religião que diminuiu o valor da mulher, mas o próprio homem depois do pecado. Sei que você não acredita em pecado, mas a dominação do homem sobre a mulher foi uma consequência do pecado e não um plano de Deus, infelizmente biologicamente somos mais frágeis no sentido força, portanto o próprio homem dominou a mulher e a sociedade diminuiu as mulheres de tal maneira que nós perdemos o valor durante séculos, não existe nenhum lugar do mundo que trate as mulheres tão bem quanto os homens. Em contrapartida lendo a bíblia vejo que Deus igualou as mulheres, também temos histórias inspiradoras de mulheres como a juíza Debora, a profetiza Hulda e a Rainha Ester, mulheres que eram minorias e andavam em contra mão a sociedade. Pra mim a pessoa que justifica religião para rebaixar a mulher está errada, ainda mais se essa pessoa acreditar em Jesus, que claramente tratou as mulheres em igualdade como ajudando a Maria Madalena, uma prostituta, ou conversando com uma mulher samaritana. Enfim não acho que o problema está na religião, mas na própria pessoa sabe? De restante parabenizo seu texto, pois não consigo ver nada de normal em estupro ou no rebaixamento da mulher, ainda mais se for feito pelo próprio marido.

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  3. Evy, considerando que o estupro era "algo comum" e a religião o embarcava sem críticas em suas escrituras, substituindo a decisão feminina pela vontade divina inquestionável, podemos então afirmar que as escrituras têm encrustados em suas passagens inúmeros pontos definidos não pela inspiração divina imutável e atemporal (que certamente era e é contra o estupro), mas por definição cultural. Se a cultura da época era de desrespeito à sexualidade feminina e isso não era repudiado pelas escrituras sagradas, então estas escrituras permitiam o estupro (com o mesmo raciocínio de que comer alface não era proibido por que Deus não proibiu).

    Todavia, hoje constatamos que o estupro deve ser vorazmente combatido e nós evoluímos a esse ponto de moral e respeito sem ajuda da bíblia – muito pelo contrário, certamente teríamos avançado algumas décadas ou séculos antes, se ela não defendesse intolerantemente seu ensinamentos patriarcais, provincianos e dominadores. Com isso, podemos afirmar que a sociedade evoluiu apesar de se balizar em livros sagrados que guiava-nos ao contrário.

    O argumento de que a ordem não veio de Deus, mas de Moisés, faz com que questionemos praticamente todas as escrituras sagradas pois, via de regra, Deus não as escreveu, nem seu(s) descendente(s), mas apenas seus ouvintes e seguidores. Os ouvintes comumente escreviam pontos divergentes, mas eram ignorados por não coadunarem com os “seguidores”. Nenhum trecho bíblico foi originariamente redigido por Deus ou seu filho, pois todos foram redigidos sob “inspiração divina” apenas, de modo que todas as passagens, parábolas, fatos, doutrinas, histórias, estórias, culturas, foram relatadas por terceiros, cheios de preconceitos e valores de seu espaço-tempo.

    O problema está sim na pessoa, na pessoa que escreveu textos sagrados se dizendo tomada por divindades; na pessoa que dá sermões furtando-se de ensinamentos religiosos para atingir finalidades pessoais e escusas; na pessoa que não sabe diferenciar uma possível espiritualidade (contato com "ser superior") de cultura (o "ser superior" determinando nossos hábitos cotidianos, pacificando, homogeneizando, amedrontando e subjugando-nos, conforme interpretações equivocadas das religiões manipuladoras).

    Sobre o seu argumento de que ateísmo também é uma religião, sugiro que você conheça um pouco sobre ciência, diferenças essenciais entre ciência e religião, métodos de falseabilidade e de conhecimento. Tem um livro muito bom de Johaness Hessen, Teoria do Conhecimento, bem fininho, que dá para começar a soprar a neblina que está diante dos seus olhos.

    Até mais.

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